29 maio, 2010

Brinquedos por direitos?

Tópicos de uma intervenção proferida em 25 de Maio de 2010, na Conferência “Brinquedos por Direitos?”, organizada pelo Núcleo da Amnistia Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pelo Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, José de Melo Alexandrino. Ver o texto na íntegra em http://icjp.pt/System/files/Brinquedos%20por%20direitos.pdf

Segundo Eric Voegelin, Nietzsche forneceu a sua chave de auto-interpretação numa nota de 1884 intitulada Via da Sabedoria1 :“A Via da Sabedoria é cumprida em três fases. Na primeira, o homem tem de respeitar, obedecer e aprender. É o tempo da ascese espiritual, da admiração e do combate às inclinações mesquinhas. Na segunda, o coração tem de quebrar as suas amarras, cultivar a independência, o deserto e o espírito livre. Por fim, o viajante decide se está apto para a acção positiva. É o tempo do instinto criador e da grande responsabilidade em que o homem se concede a si mesmo o direito de agir”2.

Fixados na primeira fase, tomemos agora uma outra síntese, feita por Ignacio Campoy Cervera sobre o entendimento de Rousseau: “[...] no que diz respeito à infância, a atenção tem de centrar-se na criança, porque a infância tem, como qualquer outra etapa da vida, a sua própria perfeição; por outro lado, o homem é bom por natureza, de onde resulta que a intervenção externa das pessoas prejudica o desenvolvimento vital”3.

Eis-nos perante um grande contraste de perspectivas sobre como entender a infância, contraste que tomarei como ponto de partida e como referência para situar o problema dos direitos da criança; no final, porque clarificações desse tipo se tornam cada vez mais urgentes, direi de qual dessas duas perspectivas me considero mais próximo.

Não sendo fácil definir uma linha de análise que tivesse em conta o tema expresso (brinquedos por direitos?) e o tema que me foi dito estar subjacente ao colóquio (o bullying), a via de saída que encontrei foi esta: (i) começar pela perspectiva jurídica do mundo dos direitos das crianças, sistematizando aí algumas ideias; (ii) para tentar, depois, uma observação interdisciplinar da relação entre crianças e direitos, no quadro do que podemos designar de uma teoria da complexidade4.

Importa então concluir, tentando responder à pergunta subjacente ao confronto inicial: tem razão Nietzsche ou Rousseau? Ou, se quiserem, tem mais razão Nietzsche ou Rousseau?

Não hesito na resposta: Nietzsche tem razão!

Independentemente de dever brincar e de ser, hoje – como ainda não era no tempo de Nietzsche – titular de um conjunto de direitos (onde talvez se possa vir a incluir uma imunidade contra o excesso de brinquedos), a criança há-se necessariamente respeitar, obedecer e aprender, ainda que numa estrutura móvel, articulada com a sua progressiva autonomia:


(1) Respeitar certos valores, a começar pela consideração devida ao outro5;
(2) Obedecer àqueles que definem a direcção da educação, respeitados os limites correspondentes aos seus direitos;
(3) Aprender – o que significa necessariamente esforço, sacrifício, empenhamento.
Ao invés, também nesta parte Rousseau se equivocou: nenhuma pessoa se realiza sem uma devida e qualificada interacção com o contexto exterior (aí incluindo os valores recebidos do passado).

1Eric Voegelin, Estudos de Ideias Políticas: de Erasmo a Nietzsche, Lisboa, Ática 1996, p. 225
2Ibidem
3Ignacio Campoy Cervera, «La educación de los niños en el discurso de los derechos humanos», in Id. (org.), Los Derechos de los Niños: perspectivas sociales, políticas, jurídicas y filosóficas, Madrid, Dikinson, 2007, p. 171 [149-201].
4Para uma aplicação, José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição portuguesa, vol. I – Raízes e contexto, Coimbra, 2006, pp. 82 ss.
5Sobre o tópico do crescimento do sentimento de empatia, “entendido como capacidade que tem o homem de sentir como seu (o que quer dizer na mesma medida) o sofrimento das outras pessoas”, Ignacio Campos Cervera, «La educación de los niños...», p. 195.

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